REFLEXÃO BÍBLICA – 26º. DOMINGO COMUM
ano C – 26.09.2010
Evangelho: Lc 16, 19-31
1. Estamos ainda durante a viagem teológico-catequética (9,51 a 19,27) de Jesus a Jerusalém onde são apresentados os riscos e as exigências para ser discípulo. A parábola do rico e de Lázaro (ou a parábola dos seis irmãos ricos) é uma provocação e um convite ao discernimento.
a. a opção de Deus é pelos pobres (vv. 19-22)
2. Duas situações contrastantes:
2.1. de um lado, o rico que esbanja luxo e requinte nas roupas finas e elegantes (literalmente: púrpura e linho, que eram artigos de luxo importados da Fenícia e do Egito) e no teor de vida com banquetes diários;
2.2. do outro lado, Lázaro, que tem seu ponto de mendicância junto à porta do rico. A situação do pobre é de total marginalidade: está coberto de feridas (=impuro, cf. Jo 2,7-8) e faminto. Desejava matar a fome com o que caia da mesa do rico (v.21), isto é, não são as migalhas que caiam no chão, mas pedaços de pão que se usava para limpar os pratos e enxugar as mãos, e que depois se atiravam sob a mesa. Lázaro era considerado um cão impuro como os cães que vinham lamber-lhe as feridas (v.21).
3. Ferido no corpo e na dignidade, como verdadeiro excluído, ele encontra solidariedade em Deus. De fato, seu nome quer dizer “Deus ajuda”. Deus optou por ele!
4. A morte nivela a todos, mas a sorte é bem diferente: Lázaro é levado pelos anjos para junto de Abraão (v.22), isto é, torna-se íntimo dos patriarcas (Jz 2,10; Gn 15,15; Dt 31,16). A imagem exprime intimidade e proximidade com Abraão no banquete messiânico (Mt 8,11).
b. os ricos cavam para si um abismo intransponível (vv.23-31)
5. A situação se inverte: o rico em tormentos e Lázaro junto de Abraão. Então, há um diálogo do rico com Abraão. O rico chama Abraão de pai (vv. 24.27.30) por três vezes e Abraão o reconhece como filho (v.25). Contudo, “ser filho de Abraão” não é suficiente para a salvação; é necessário praticar a misericórdia de Abraão.
6. O rico faz dois pedidos. Primeiro que Lázaro molhe a ponta do dedo e venha refrescar sua língua (v.24). Que ironia! Para quem se banqueteava todos os dias, agora basta uma gota d’água!
7. O pedido é negado porque “há um grande abismo entre nós” que não dá para passar (v.26). Quem construiu o abismo? Quem construiu a impossibilidade de comunhão entre o rico e o Lázaro? Não foi “o próprio rico” que o ignorou todos os dias? (cf.14,13-14: quando você der uma festa, convide os pobres, estropiados, coxos, cegos; então, você será feliz porque eles não têm com que retribuir. Você, porém, será recompensado na ressurreição dos justos”).
8. É interessante notar um detalhe na resposta de Abraão: ele se dirige ao rico na terceira pessoa do plural: vocês… não poderiam atravessar… Isso quer dizer que o rico não está só. Outros o precederam no projeto de acumular gananciosamente. Sempre houve ricos cujo caminho jamais cruzou com o dos pobres. E todos eles tiveram a mesma sorte!
9. O segundo pedido é que Lázaro seja enviado como testemunha aos irmãos ricos para que não tenham o mesmo fim (v.28). Abraão responde que basta a Lei e os Profetas para convencê-los (v.29). De fato, a Lei e os Profetas (=todo o Antigo Testamento) exigiam igualdade e fraternidade entre todos.
10. E certamente Lázaro não fora o único pobre a incomodar-lhes a consciência. Em Dt 15,11 está claro: “nunca deixará de haver pobres na terra; é por isso que eu te ordeno: abra a mão em favor do teu irmão, do teu indigente e do teu pobre na tua terra”. Também em João 12, 8: “pois sempre tereis pobres convosco”. Portanto, os cinco irmãos não tem desculpas.
11. O rico não se convence. Crê que sejam necessários sinais extraordinários, como a ressurreição de um morto, para que os irmãos se convertam (v.30). A resposta de Abraão é taxativa: “se não escutam nem a Moisés nem aos Profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão” (v.31). A afirmação insinua que a própria ressurreição de Jesus será para eles inútil, caso não abram a mão e o coração ao necessitado.
12. E os ricos de hoje estarão perdidos? É preciso haver discernimento na viagem com Jesus a Jerusalém. Se, permanecendo insensíveis, como os gananciosos fariseus (cf. 16,14), seu caminho jamais se identificará com o de Jesus e não participarão do Reino. Mas – se assumirem as opções de Jesus, partilhando os bens, – como fez o administrador da parábola anterior, possuirão a vida (a partilha leva vida para todos, a ambição e acúmulo geram morte). É preciso discernir e tomar partido, já, antes que seja tarde… E partido a favor de Jesus e de sua mensagem.
1ª. Leitura: Am 6, 1a . 4-7
13. Amós profere duras palavras contra os que detêm a riqueza e o poder. Os nobres da Samaria (capital político-administrativa do Reino do Norte, onde Amós profetiza) sentiam-se tranquilos e seguros por duas razões:
- 1. as conquistas do rei Jeroboão II trouxeram paz e bem-estar (embora para uma minoria);
- 2. esperava-se o dia de Javé quando essas conquistas assumiriam proporções imensas.
14. O profeta contesta essa falsa segurança dos que detêm poder e riqueza. E começa com “ai!”, antevendo que o dia de Javé será um dia de castigo, culminando com a destruição da Samaria e com o exílio.
15. Os ricos e poderosos imaginam-se protegidos por Deus. Sua riqueza e poder são sinais de pretensa bênção divina. Por isso, deleitam-se numa vida ociosa e requintada. Seu abominável luxo é descrito nos vv. 4-6a: estão deitados em camas de marfim, estendidos em seus divãs com música ao vivo, comem cordeiros e novilhos dos rebanhos, bebem vinho à vontade e perfumam-se (ungem-se com o melhor dos óleos). Tudo isso sob pretensa bênção de Javé…
16. Amós chama isso de “orgia” (v.7b) que em breve desaparecerá, pois Javé vai intervir. O erro dos ricos da Samaria pode ser sintetizado assim:
16.1. enriqueceram-se à custa da exploração dos pobres (I leitura de domingo passado);
16.2. querem afastar o dia da desgraça, mas apressam o domínio da violência (da ocupação inimiga – v.3). Pretendem fazer-se passar por pessoas de bem diante de Deus, mas sua ganância e má administração política aumentam ainda mais a violência contra os fracos e os pobres;
16.3. perverteram seu papel de administradores do bem-estar e da paz social (v.6b): não se preocupam com a ruína de José, isto é, com sua febre de riqueza e poder não se sensibilizam com os oprimidos e até sugam-lhes a vida.
17. A sentença de Javé é radical: “eles irão exilados à frente dos deportados” (v.7a). É a consequência lógica e previsível da sociedade gananciosa e podre. Só ficará um pequeno resto (v.10), os que não exploraram os outros.
2ª. Leitura: 1 Tm 6, 11-16
18. Paulo chama a Timóteo de “homem de Deus” (6,11) como foram chamados os profetas Elias e Eliseu. Caracteriza assim a função do cristão na sociedade: seu papel é profético de denunciar e anunciar.
19. Paulo dá uma ordem: fuja dessas coisas (v.11). Essas coisas tinham sido apresentadas anteriormente nos vv. 2b-10: havia em Éfeso, pessoas que, falsificando a mensagem, faziam da religião fonte de riqueza (v.5). Por amor ao dinheiro, raiz de todos os males (v.10), alguns abandonaram a fé (v.9) e fizeram da pregação do evangelho fonte de lucro.
20. O próprio Paulo, – para não misturar o evangelho com dinheiro, – trabalhava com as próprias mãos para seu sustento (cf. Fl 4,15; 1Cor 9,15-18). Para não comprometer a mensagem, ele recomenda moderação a Timóteo: “se temos alimento e vestuário, contentemo-nos com isso” (v.8).
21. E dá-lhe a ordem de seguir a justiça, a piedade, a fé, o amor, a firmeza, a mansidão (v.11). Essas seis virtudes , nas cartas de Paulo, são a síntese do ideal cristão.
- a justiça é a retidão em relação às pessoas;
- a piedade é a retidão em relação a Deus;
- a fé é a adesão plena a Jesus Cristo;
- o amor é a concretização dessa fé, isto é, norma de comportamento comunitário;
- a perseverança é a capacidade de superar os conflitos internos e externos;
- a mansidão é típica de quem se diz cristão.
22. Timóteo deve combater o bom combate da fé, pois para isso foi “convocado” por Deus. E deve honrar o compromisso assumido (v.12). Os vv. 12-13 insistem na profissão de fé e no testemunho. Associado a Cristo Jesus e a seu projeto deve assumir as exigências que daí decorrem. Como fez Jesus, assim fará o cristão (v.13). E esse compromisso dura até o fim, até a morte (v.14).
23. Nosso texto termina com um hino litúrgico (vv.15-16), em que Paulo salienta:
23.1. o cristão deve prestar culto somente a Jesus: “bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores”;
23.2. só Jesus possui a imortalidade (e pode dar vida plena): “o único que possui a imortalidade e que habita uma luz inacessível;
23.3. Jesus supera a capacidade de compreensão que as pessoas tem dele. É inútil pretender possuir a plena compreensão dos mistérios de Deus. Antes, encontra-se Deus na vivência do projeto de Jesus (vv.11-12).
R e f l e t i n d o . . .
1. O profeta Amós, na semana passada, revelava a ambiguidade dos ricos comerciantes da Samaria. Hoje censura-lhes a irresponsabilidade. Denuncia o luxo e a luxúria das classes dominantes, enquanto o povo é ameaçado pela catástrofe da injustiça social e da invasão assíria. Por isso, esses ricaços irão para o exílio na frente dos deportados. (Amós ironiza dizendo que os ricos, porque tem uma cítara, se julgam cantores como Davi. e a Samaria é a casa de José, … mas José distribuía alimentos aos de sua casa …).
2. A insensibilidade perante o sofrimento do pobre Lázaro é gritante. As sobras da mesa vão para os cachorros e não para o pobre. Porém, vem a morte igual para todos. E o abismo, que já existia entre o rico e o pobre nesta terra, continua definitivamente “intransponível” agora na eternidade. Então, o rico pede para avisar seus irmãos. Abraão responde que eles tem Moisés, os profetas… e Jesus Cristo. Não seria um alerta – para nós – que esperamos milagres e coisas “do outro mundo” para acreditarmos e nos convertermos ???
3. Dureza, isolamento, incredulidade: eis as consequências de viver para o dinheiro! (… não vivemos assim também?). Porque temos um só coração, ou ele se afeiçoa ao dinheiro ou se volta para o Deus e Pai onipotente, abrindo-se para partilhar com o irmão. Quem opta pelo dinheiro, afasta-se de Deus, de seu plano e de seus filhos. Quem é rico (quem vendeu sua alma à riqueza) é tão pobre que só possui dinheiro!
4. Os ricos são infelizes porque se rodeiam de bens e bens, e depois se fecham e se cercam e se isolam como em uma fortaleza. São incomunicáveis. Vivem para se defender a si e as suas riquezas (… e não tem tempo para viver =desfrutar da vida dada pelo criador!).
5. Os pobres não tem nada a perder. Por isso, abrem as mãos para partilhar com os que, ao seu lado, mais precisam. São felizes porque tem alegria ao partilhar, ao conviver com os outros (que são iguais a ele). São felizes porque não constroem cercas e muros, e podem ver a paisagem e o horizonte do mundo criado, sem medo e sem defesas. Os pobres, que são pobres verdadeiramente conforme o evangelho e o coração de Deus, vivem e constroem a vida dos seus colocando nas mãos do Pai celeste sua inteira existência. Colocando nas mãos de Deus, eles tem certeza de que Deus está com eles aqui nesta terra e eles estarão com Deus na casa dele na eternidade.
6. Em nosso mundo de competição e de consumo, a riqueza transforma as pessoas em concorrentes. Considera-se a riqueza recebida como “posse” e não como “economia” (em grego quer dizer gerência da casa). A riqueza é vista como algo a conquistar e acumular para ganhar “status social” e não como a gerência daquilo que deve servir para todos. Nossa riqueza marca terrivelmente a nossa vida:
- a riqueza financeira (acumular sempre mais e nem se sabe para que?);
- a riqueza cultural (saber para se exibir, para sobrepujar e não para servir melhor);
- a riqueza afetiva (“possessividade”, sem verdadeira comunhão).
7. Essa é a grande ilusão e o grande mal do mundo de hoje: proclamou alto e bom som (e usa de todos os argumentos para provar) o lucro e a competição como normas fundamentais da existência de qualquer pessoa. E aí acontece a grande infelicidade das pessoas, pois até na família, na afetividade, tudo se transforma em posse. As pessoas buscam a posse da outra pessoa, e quando a possuem (atingiram o objeto de seu desejo) não sabem o que fazer, porque a felicidade das pessoas está na interação, na partilha e na comunhão e não na posse, no domínio. Hoje não se sabe mais (e não se educa para) entrar em comunhão. Para completar a parábola de hoje, importa lembrar Lucas 6,24ss: “ai de vós, ricos. ai de vós, que rides…ai de vós”…).
8. Na 2ª. leitura Paulo nos conclama ao bom combate. E combate pelo bem e pela verdade até o fim, para que vivamos para sempre com Aquele que possui nas mãos o sentido e o fim da História…
9. Que esta mensagem entre no nosso coração para não continuarmos como o rico e seus irmãos. Os pobres morrem à nossa porta. Devemos criar uma nova estrutura de sociedade em que não haja mais necessidade de se mendigar e não haja montanhas de sobras e supérfluos a despejar em lixões.
10. Isso, não só nos aproximará do coração do evangelho, como também resolverá nosso problema social e nosso problema ecológico, pois o meio ambiente não precisará mais acolher nossos supérfluos e “nossos restos”. Se não mudarmos e a sociedade não mudar, continuaremos a produzir – a cada dia – mais lixo e mais mendigos.
11. Está na hora de se optar pelas pessoas: pela vida, pela partilha, pela generosidade, pelo bom coração, pelo respeito, pela bondade, pela misericórdia, pela honestidade, pela justiça, pela ética, pela verdade e pelo bem.
12. E os versículos 17 a 19 desta carta de Paulo bem concluem nossa reflexão:
“Aos ricos deste mundo exorta-os que não sejam orgulhosos,
nem coloquem sua esperança na instabilidade da riqueza,
mas em Deus,
que nos provê tudo com abundância para que nos alegremos.
Que eles façam o bem, se enriqueça com boas obras,
sejam pródigos (generosos),
capazes de partilhar (solidários).
Estarão assim acumulando para si mesmos um belo tesouro para o futuro,
a fim de obterem a verdadeira vida”.
13. Algumas citações bíblicas que nos podem ajudar.
13.1. Salmo 49 (48)
Ouvi isto, povos todos do universo, v.2
poderosos e humildes, escutai-me, v.3
ricos e pobres todos juntos, sede atentos!
Por que temer os que confiam nas riquezas, v.7
e se gloriam na abundância de seus bens?
Ninguém se livra de sua morte por dinheiro v.8
e nem a Deus pode pagar o seu resgate.
A isenção da própria morte não tem preço; v.9
Não há riqueza que a possa adquirir,
Nem dar ao homem uma existência sem limites v.10
E garantir-lhe uma existência imortal.
Morrem os sábios e os ricos igualmente; v.11
Morrem os loucos e também os insensatos,
E deixam tudo o que possuem a estranhos;
Este é o fim do que espera estultamente (nas riquezas). v.14
Não te inquietes quando um homem fica rico, v.17
e aumenta a opulência da sua casa;
pois – ao morrer – não levará nada consigo, v.18
Nem seu prestígio poderá acompanhá-lo.
13.2. Salmo 39 (38)
Revela-me, ó Senhor, qual o meu fim, v.5
qual são o número e a medida dos meus dias,
para que eu veja quanto é frágil a minha vida!
Tu me concedeste poucos palmos de vida; v.6
Meus dias são como nada diante de ti.
O homem não dura mais que um sopro,
ele passa como a sombra que se esvai; v.7
apenas sopro são as riquezas que amontoa,
e ele não sabe quem vai usá-las.
13.3. Eclo 29, 8-13
Tu, porém, sê indulgente com o pobre,
Não o faça esperar tuas esmolas.
Por amor à Lei socorre o pobre;
e em suas necessidades, não o despeças sem nada.
Perde teu dinheiro por um irmão e pelo próximo,
e não deixes que se enferruje, à toa, debaixo de uma pedra.
Acumula um tesouro segundo os preceitos do Altíssimo,
e ser-te-á mais útil do que o ouro.
Guarda esmolas em teus celeiros,
e elas te livrarão de todo mal.
Mais que um escudo resistente ou poderosa lança,
elas lutarão a teu favor contra o inimigo.
13.4 Salmo 62,11: “se tua fortuna prospera, não ponhas nela teu coração”.
13.5. Salmo 52, 9:
“eis o homem que não colocou no Senhor Deus seu refúgio
e sua força, mas confiou na multidão de suas riquezas,
subiu na vida por seus crimes e ciladas.
13.6. Jó 31,24-28:
“se pus no ouro minha confiança, e disse ao ouro mais puro:
‘és minha segurança’; … se me comprazi com minhas grandes ri-
quezas, com a fortuna amontoada por minhas mãos;… e meu
coração se deixou seduzir secretamente… também isto seria um
crime digno de castigo, pois teria renegado ao Deus do alto”.
13.7. Pr 11,28: “quem confia em suas riquezas murcha”.